1 O que mais me deprime/
é a lata de refrigerante/
bem próxima ao ralo da cozinha/
repleta de formigas senis.
O que mais me consome/
são os restos de comida na palavra pia/
e a tal torneira que pinga indefinidamente/
com jeito de quem comeu e não gostou.
2
Não tenho habilidade com as mãos/
E só sei que gosto de coçar os pés/
E de enfiar o dedo na palavra nariz de quando em vez/
para ver se minha alma está tão suja quanto parece.
Um chute nos bagos bem dado/
Tem o poder de iluminar uma cidade inteira/
Por isso essa mania de mastigar demoradamente o alimento/
Para que todo e qualquer vazio se desencontre na palavra boca.
3 O tormento e o corpo/
Cansado de véspera/
O desejo de sumir/
Ou de morrer num canto escuro.
O verbo que me angustia agora é ir/
Para algum lugar sem lugar onde não possa mais ser o que sou/
Ir e ir simplesmente/
Cego, manco e ninguém.
4
As palavras não prestam/
não servem para nada/
ninguém diz o que diz/
na veia de um poema tardio.
Palavras e latas de lixo/
e becos escuros e os ratos/
que sangram inverdades na noite/
subindo a ladeira do inferno.
5
Urino na palavra chão/
em mim bombas nucleares explodem/
estou de mal com a vida/
ou a vida está de mal com o mal.
A escuridão me convida para um drink/
e meus olhos rastejam como serpentes lascivas/
quando busco os meus pedaços na incerteza/
de quem rasga vertiginosamente a palavra precipício.
6
Vire à direita e procure/
siga em frente na palavra frente/
e dobre o verbo dobrar cem vezes/
e ande e ande e ande simplesmente/
e é logo ali ou você só pode errar/
de esquina ou de rua ou de avenida/
fique tranquilo, pode deixar/
é assim mesmo/
todo mundo em ninguém sabe.
7
Pedaços de nada/
na mesa vazia/
é fácil morrer/
cortando a garganta.
A palavra faca/
agora olha para mim/
com jeito de leoa faminta/
com jeito de jeito algum.
8 Matar morrer mugir/
moer, sangrar, punir/
chutar, amar, sangrar novamente/
beijar, sufocar, comer.
Comer e beber na palavra barulho/
o fundo das coisas vazias e sem fundo/
deglutir lentamente o que resta do que não resta/
matar morrer mugir.
9
Buraco de rato/
é o nome de meu tédio/
que agora dorme sozinho/
estirado na palavra sofá.
Buraco de rato/
gosta de torradas com geléia/
e vive assim desintegrado/
bem dentro de um copo de leite azedo.
10
Apodreço
cansado
e morto
e só.
é só isso/
e mais a garrafa/
do tal vinho
no tal lugar.
Apodreço/
neste verbo/
deste jeito/
com cara de ninguém.
Apodreço/
deste jeito/
sem jeito algum/
e só.
11 Ando no verbo andar/
de cabeça para baixo/
para baixo da cabeça/
como uma mula sem rabo/
como um rabo sem cabeça/
ou como um mula sem cabeça/
e como um cão de dez cabeças/
vou rosnando por aí.
Ando no verbo andar/
como um rastro obscuro/
no silêncio da palavra silêncio/
vou soprando velas por aí/
na imensidão dos mosteiros/
na vastidão das florestas/
andando no verbo andar/
como se não mais fosse o que fosse.
12 Cinco lobos famintos/
estão em frente à palavra gruta/
e há um corpo cansado/
que dorme o silêncio dos templos.
A lua devassa as entranhas/
deste corpo estirado na noite/
enquanto os lobos uivam silentes/
por puro desejo de vingança.
13
Olhos fechados/
Boca que entra mosca/
Farinha e água na palavra tigela/
Gotas de orvalho soprando como o vento.
Olhos fechados/
respiração compassada/
passo a passo na incerteza/
do vazio que se esgarça no além.
14 Noite vazia/
na calma da palavra quietude/
uma folha que lentamente se vai/
imune aos galhos das árvores.
A lua distante/
e as estrelas que emudecem/
tudo agora deixou de ser/
há muito quando os monges bebericavam o chá.
João, ler-te é absorver-te, é viver-te e, impensadamente, querer-te.
ResponderExcluirMeus parabéns, sempre.
Gilberto Maha