A questão relacionada ao uso das rimas em poesia aponta inevitavelmente para duas situações nodais.
A primeira delas diria respeito ao perigo do uso indiscriminado das mesmas, fato este que afetaria o conteúdo daquilo que é enunciado, ou seja, corre-se o risco de se mergulhar no que o grande poeta Eliot chamaria de mera canção empobrecendo assim a essência do trabalho.
Tenho lido vários poemas que apresentam esta problemática, apesar de soarem bem aos ouvidos, mas concordo com o mestre no que se refere à inestimável perda de sentido tão presente nos mesmos.
O ideal seria um equilíbrio entre som e sentido para que o poema não se torne demasiadamente barulhento.
Parece que os ingleses conseguiram realizar tão feito com admirável competência.
Basta estudar a obra dos mesmos para perceber que o fluxo textual alia sentido e som de maneira singular.
Alguns poetas brasileiros também o fizeram, mas infelizmente em número bem menor, com extremo zelo e mestria.
Aponto Carlos Drummond e Cecília Meireles e alguns outros como expoentes máximos neste sentido.
Quando lemos coisas como estas, quando realmente o fazemos, somos afetados não só pela magia do som, mas também pela beleza do sentido implícito nos textos.
Amar o perdido/
deixa confundido/
este coração
nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do não.
As coisas tangíveis/
tornam-se insensíveis/
à palma da mão
Mas as coisas lindas
muito mais que findas
estas ficarão.
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Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
QUESTÃO DE RIMA II
O outro ponto ao qual me referi no início de artigo diz respeito ao uso criterioso das rimas com o fito de evitar que o texto se torne literalmente piegas.
Tenho lido verdadeiras aberrações e lamento que tais autores não tenham sido melhor orientados.
Rimar nunca foi tarefa fácil e requer sabedoria, refinamento e prática para tal.
Trata-se de um trabalho artesanal, resultado talvez de anos de esforço de tentativas e erros até que se atinja o assim chamado estado de segunda natureza.
Retomemos agora o poema de DRUMMOND:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Reparem que no primeiro verso temos o verbo amar flexionado no infinitivo sugerindo em termos semânticos a ideia de extensão, de infinidade juntamente com algo que se perdeu, ou seja, amar enquanto estado de graça e luto na medida em que este infinitivo é atingido pelo inexorável presente do indicativo do verbo deixar.
Temos o amar no passado e presente e futuro na superfície vez por outra maculada pelo verbo deixar, pelo adjetivo confundido, pelo pronome demonstrativo este e pelo substantivo coração.
Vale observar a riqueza das rimas, ricas na sua natureza, a saber:
perdido e confundido, dois adjetivos que encerram um som misterioso e ao mesmo tempo agradável aos ouvidos.
Na segunda estrofe temos:
Nada pode o olvido/
contra o sem sentido/
apelo do não.
O ato de deixar de lembrar dilacerado pelo inexorável apelo de uma negação, de uma rejeição profunda e duradoura. atrofiando momentaneamente a percepção do mundo, a saber:
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão/
Reparem na transição em termos de rima, reparem na escolha de um adjetivo sofisticado, raríssimo na maioria dos poemas que vemos por aí,
para um adjetivo bem mais coloquial, vale dizer de fácil absorção, como é o caso de insensível.
Observem o cuidado em termos de sonoridade como se vivenciássemos pequenos mantras em perfeita harmonia.
Caminhamos desta forma para resolução do impasse na afirmação da vida através do reencontro com o belo.
Mas as coisas lindas
muito mais que findas
estas ficarão.
Sugiro que fechemos os olhos e recitemos este poema com especial ênfase nestas rimas misteriosamente zen.
terça-feira, 21 de fevereiro de 2012
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